Maria Raquel Moreira, sócia da Cuatrecasas: “Nem tudo nos lobbies é virtuoso”

Maria Raquel Moreira, advogada sócia da Cuatrecasas, tem experiência na resolução de litígios, designadamente no contencioso civil, bem como em questões comerciais e societárias. Leia a entrevista.

Maria Raquel Moreira presta assessoria jurídica a empresas em situação económica difícil e em questões de recuperação de ativos, bem como em processos de insolvência e reestruturação. Tem experiência na resolução de litígios, designadamente no contencioso civil, bem como em questões comerciais e societárias.

Tem trabalhado com clientes de diversos setores de atividade, nomeadamente instituições financeiras e banca, grandes empresas nacionais e internacionais, e empresas públicas. Entre 1995 e 2022 exerceu a sua atividade na SLCM – Serra Lopes, Cortes Martins & Associados, uma sociedade de advogados com mais de 60 anos de atividade que prestava serviços jurídicos em todas as áreas do direito e que se integrou na Cuatrecasas em 2023.

No programa de Governo apresentado, a suspensão provisória do processo aplicada a quem contribuir para a verdade nos processos de corrupção está a ser ponderada. É uma medida positiva?

A possibilidade de suspensão provisória do processo já existe há muito no nosso ordenamento em processos por alegada prática do crime de corrupção. Por princípio, não sou favorável à negociação com suspeitos ou confessados autores da prática de crimes e acho que os incentivos à colaboração com a descoberta da verdade podem introduzir distorções indesejáveis na realização da Justiça. A colaboração com a descoberta da verdade pode ser sempre valorada na definição da medida da sanção a aplicar. Pragmaticamente, porém, percebo que em crimes em que a prova pelo Ministério Público é especialmente difícil de fazer, como é o caso da corrupção, poderá ser uma medida que permite efetivamente identificar situações concretas de corrupção e a condenação de culpados.

E a fixação de 72 horas do prazo máximo para decisão de medidas de coação desde a detenção de um arguido, permitindo ainda que possa ser ouvido por mais do que um juiz de instrução?

A detenção de um arguido para interrogatório deve ser a exceção e não a regra. Não podemos aceitar, como recentemente tem sucedido, que interrogatório seja sinónimo de detenção ou que cidadãos fiquem dias, semanas mesmo, detidos à espera de ser ouvidos pelo Juiz de Instrução e de lhes verem aplicadas, ou não, medidas de coação. Esse tratamento é indigno e, na minha opinião, grande parte das vezes injustificado. Não é admissível a normalização desta prática porque é a liberdade das pessoas que está em causa. Se a complexificação da criminalidade exige soluções diferentes, como por exemplo a que se vem falando de poder intervir mais de um juiz de instrução no interrogatório de arguido detido (e haverá outras, como a detenção domiciliária que, sendo embora uma medida privativa da liberdade é substancialmente diferente de estar detido numa prisão ou em instalações da Polícia Judiciária), pois que se analise e estude e se introduzam as alterações que forem necessárias. E, sobretudo, insisto, que só se recorra à detenção quando é a única forma de garantir a eficácia da investigação. Muitas vezes temos a sensação que falta essa inevitabilidade.

Não podemos aceitar, como recentemente tem sucedido, que interrogatório seja sinónimo de detenção ou que cidadãos fiquem dias, semanas mesmo, detidos à espera de ser ouvidos pelo Juiz de Instrução e de lhes verem aplicadas, ou não, medidas de coação. Esse tratamento é indigno e, na minha opinião, grande parte das vezes injustificado”

Estamos demasiado obcecados com a corrupção?

Não creio. E se estamos, acho que é uma “boa” obsessão. Com os níveis de corrupção que ainda se registam e com Portugal a descer no índice de perceção da corrupção da Transparency International, é preciso fazer mais e melhor. Nos últimos anos tem-se intensificado a produção legislativa no sentido de um combate efetivo à corrupção. O regime geral da prevenção da corrupção e a criação e instalação do Mecanismo Nacional Anticorrupção, com a exigência de envolvimento não apenas das entidades públicas mas das empresas, são sem dúvida instrumentos que nos permitirão num futuro próximo ver resultados. Mas ainda há um longo caminho a fazer. Partimos de décadas (séculos?) de aceitação e desculpabilização da pequena corrupção, o que torna mais difícil esta luta.

Nas 186 páginas do programa de Governo, não há uma única referência à advocacia. Isso é preocupante?

Não há referência aos advogados, como não há referências a outros agentes da realização da Justiça. Em si mesmo não vejo que isso deva constituir uma preocupação. Há referências à Justiça. Se são suficientes, ou não…

Faz sentido a fase de instrução deixar de existir, no processo penal?

A fase de instrução tem razão de ser. É a oportunidade de se corrigir uma decisão de arquivamento ou de acusação que não devesse ter sido proferida pelo Ministério Público. Sou particularmente sensível aos casos em que se impede o julgamento de alguém relativamente a quem não haja indícios suficientes ou em que seja mesmo possível afastar qualquer implicação com relevância criminal. Não é nada indiferente estar sentado no banco dos réus a ser julgado pela prática de um crime. Dito isto, o que não deve suceder é a instrução ser transformada numa outra fase de audiência de julgamento, como muitas vezes sucede na prática.

A prestação de contas por parte do MP é uma miragem?

Todos devemos estar disponíveis para prestar contas nas nossas respetivas áreas de intervenção.

 

O que faz falta no Ministério Público?

Maior consciência do impacto que a sua atuação pode ter na vida dos cidadãos, em diversos planos.

Como avalia a comunicação (ou falta dela) por parte do Ministério Público/PGR?

A avaliar pelo passado recente, com nota negativa.

Os megaprocessos são os responsáveis pela demora na Justiça Penal?

Não são os responsáveis mas, como é evidente, têm a sua quota parte de responsabilidade. Essa é uma constatação que me parece ser absolutamente consensual.

A solução pode passar por ‘partir’ esses megaprocessos em vários, mais pequenos?

A solução para os megaprocessos, sim, seja promovendo a sua autonomização ou a não apensação de processos. Mas a resolução da lentidão da Justiça exige muito mais.

Existe atualmente uma espécie de perseguição a políticos por parte do Ministério Público?

Não acredito que se trate de uma perseguição a políticos. Seria gravíssimo se assim fosse. Embora o Ministério Público tenha que olhar para a classe política porque é uma classe permeável a tentativas de corrupção, como é evidente, tenho, com alguma preocupação, assistido a um certo folclore à volta destes processos que, estou muito convencida, seria desnecessário à investigação e traria muito menos prejuízo para os envolvidos sobre quem acabe a não se provar nada. É muito importante que tenhamos um Ministério Público competente, independente e sem medo de investigar, seja quem seja. Mas não queremos um Ministério Público sobre quem se façam perguntas como esta a que estou a responder.

A Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública, muito alimentada pelos comentadores televisivos residentes. Como explicar ao cidadão comum que não é assim que se faz Justiça?

Combatendo a iliteracia jurídica. O papel dos jornalistas é muito importante e temos visto bons exemplos de jornalistas que nos últimos anos se especializaram em matérias relacionadas com a Justiça e que contrastam com um outro tipo de jornalismo que pauta pela ostensiva falta de rigor, pela especulação, com retratos absolutamente descabidos e sem correspondência com a realidade…. Ter comentadores do quadrante das profissões jurídicas que, além da opinião, possam explicar os vários ângulos, incluindo técnicos, com linguagem não hermética, como já vai sucedendo muitas vezes.

Embora o Ministério Público tenha que olhar para a classe política porque é uma classe permeável a tentativas de corrupção, como é evidente, tenho, com alguma preocupação, assistido a um certo folclore à volta destes processos que, estou muito convencida, seria desnecessário à investigação e traria muito menos prejuízo para os envolvidos sobre quem acabe a não se provar nada”

Sabemos que a Justiça não é eficiente. Mas é independente? Falo do MP e dos juízes.

Acredito que a Justiça é independente, o que não significa que não possa haver casos em que, infelizmente, a independência tenha sido comprometida.

A lei do lobby vai ajudar a esclarecer e tornar certos contextos mais transparentes?

Uma das principais, se não a principal, virtude do lobbying será essa mesmo, a transparência. Mas nem tudo nos lobbies é virtuoso.

O que pode ser melhorado para não termos processos a durarem tantos anos?

Muita coisa. Há uma infinitude de medidas que poderiam fazer toda a diferença, umas simples e de rápida implementação, outras mais estruturais. Mas como sempre digo, a mudança que mais precisamos é de cultura, de abordagem ao processo. Seria possível ter uma Justiça muito mais célere sem mudar uma vírgula nas leis que temos.

Se fosse ministra da Justiça, que medida tomaria em primeiro lugar?

Garantir que uma pessoa que seja detida para um interrogatório num processo-crime não possa ficar nessa situação durante três semanas.

O segredo de justiça, na forma como está, deveria pura e simplesmente desaparecer?

O segredo de justiça é necessário mas deve ser reduzido ao indispensável ao não comprometimento da investigação e à protecção dos envolvidos. Não é aceitável, por exemplo, que um arguido esteja preso preventivamente sem saber o que consta no processo relativamente a si. Por outro lado, a assimetria de acesso à informação que consta dos autos também cria situações muito desequilibradas, como se tem visto nos processos mais mediáticos. O segredo de justiça não pode simultaneamente ser um segredo de polichinelo e um obstáculo ao exercício de direitos fundamentais pelo arguido.

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